À MESA COM DOMINGOS: À mesa no locutório de São Sixto: a complementaridade

9ª Conferência: À mesa no locutório de São Sixto: a complementaridade

“Ao terminar a sua alocução disse-lhes: é bem, minhas filhas que bebamos um pouco. E chamou fr. Rogério, encarregado da adega e disse-lhe que trouxesse vinho e uma caneca. Quando o frade trouxe o que lhe tinha sido encomendado por S. Domingos, mandou-lhe que trouxessem a caneca e encheu-a até à borda. Depois abençoou-a e bebeu ele em primeiro lugar e depois beberam os frades presentes. Os frades que ali se tinham congregado eram uns vinte e cinco, entre clérigos e leigos. Todos beberam o que quiseram, mas a caneca continuou cheia. Depois, quando todos os frades já tinham bebido disse S. Domingos: Quero que as minhas filhas bebam também. Chamou, então a Irmã Núbia e disse-lhe: aproxima-te da roda e dá de beber a todas as irmãs. Ela e uma companheira tomaram a caneca cheia até à borda. E apesar de estar tão cheia não se derramou nem uma só gota. Beberam, pois as Irmãs o que quiseram, começando pela prioresa. O santo Pai dizia de vez em quando: bebei bastante minha filhas. As irmã naquele tempo eram cento e quatro. Todas beberam o vinho que quiseram e este nem nada diminuiu”.

Este relato foi transmitido por uma monja a Beata Cecília Romana. O Papa numa das suas estâncias em Roma tinha pedido a S. Domingos a reforma de algumas comunidades femininas romanas. A Beata Cecília pertencia a uma dessas comunidades chamada Santa Maria in Tempulo. A comunidade trasladou-se a S. Sixto com o célebre ícone conhecido com o nome de Madonna de S. Sixto. A Beata Cecília fez profissão nas mãos de S. Domingos a 28 de Fevereiro de 1221.

É esta a autora do texto que acima transcrevemos. Quase diria que no texto o extraordinário é secundário. A base do texto e o mais importante a sublinhar é um convívio salutar entre irmãos e irmãs que simplesmente partilha uma caneca de vinho. Nada mais humano e nada mais belo. Há uma relação humana de homens e mulheres que, infelizmente, em épocas posteriores pareceu viver- se com desconfiança e reserva. Deste encontro ressalto a proximidade a confiança e o afeto que ligava Domingos às suas irmãs. Há uma informalidade fraterna que nos faz perceber a grandeza o projeto de Domingos que engloba no seu projeto a complementaridade de homem e mulher e hoje devemos ir mais além leigos e jovens.

Gostava de traçar agora alguns traços desta complementaridade, um valor que em cada momento devemos descobrir e valorizar.

Simon Tugwell que já citámos noutro momento diz três muito interessantes acerca da relação dos frades com as monjas que gostava de ressaltar porque induzem a perceber o sentido do espírito de família dominicana.

A primeira realização dominicana foi a comunidade de Prouilhe. O núcleo duro foi uma comunidade feminina de mulheres provenientes da heresia que, abandonadas e repudiadas pela sua família, encontram nesta comunidade canonicamente instituída uma estabilidade um quadro de vida que as protege. Mas é também local de apoio para os pregadores itinerantes. Aí eles têm a sua casa com a estabilidade até de oração que nos seus trabalhos não podem ter. Como em muitas casas de família, o elemento feminino oferece apoio um quadro de estabilidade de vida que o pregador necessita. Numa imagem neste lugar a comunidade feminina oferece uma ambiente espiritual de que o pregador tem necessidade. Estou certo que as monjas na Ordem ao longo dos tempos continuam a ser oásis de escuta da Palavra e respiração espiritual tão necessários à pregação.

Depois há um segundo momento de relação extremamente rico. Lembramos as Cartas de Beato Jordão à Beata Diana. Textos de grande beleza profundidade espiritual. A relação epistolar revela uma partilha do exercício da pregação. Mesma retiradas na sua clausura as monjas acompanham o percurso apostólico dos frades; sobre isso se dialoga se aconselha se pergunta. Há uma certa maneira de ser companheiros no trabalho da pregação através de uma certa partilha de preocupações, de anelos, de projetos.

Um terceiro momento extremamente rico é o papel das monjas no desenvolvimento da reflexão e da teologia espiritual. Estou a falar da doutrina espiritual do tempo de Mestre Eckart, no dealbar do século XIV. O desenvolvimento da doutrina espiritual, o aprofundamento da teologia espiritual deveu-se ao repto lançado pela proximidade com as comunidades femininas da Renânia.

Parecendo que a Idade Média é um tempo de obscurantismo esta relação de complementaridade tem muito que oferecer como desafio hoje.  A Igreja hoje tende a desenvolver uma dimensão clerical que nesta última década se tornou preocupante.

Na minha vida pessoal cresci muito como homem e como pregador quando me sentei com irmãs, com leigos e com jovens com quem refleti e decidi os caminhos da pregação. Em família dominicana não é o sr. Padre que deve dizer como se faz ele é um dos sentados à mesma mesa com a sua opinião, mas a obra da pregação é de todos. Programar, corrigir-nos mutuamente na avaliação do percurso é um bem imenso e só seremos família se soubermos fazer crescer projetos comuns que envolvam todos os ramos da nossa família espiritual.

Esta diferença é extremamente rica, mas é bom manter o que cada um é na sua especificidade dentro da Ordem. No trabalho que tive de realizar sempre me custou ver o frade que se comporta como um leigo e um leigo que se comporta como um frade. Falso sentido de adaptação levam à pobreza da complementaridade.

Vi nalguns lugares o perigo da “fradização” dos leigos, levados a comportar-se na oração como se de religiosos se tratassem e vejo a laicização de religiosos pondo gravemente em causa o teor e o equilíbrio entre os elementos da nossa vida. O frade deve ser frade, a monja deve ser monja, a irmã deve ser irmã e o jovem deve ser jovem nunca confundindo o papel que cabe a cada um de nós na construção de uma só família.

Na complementaridade há aspetos comuns e essenciais: o teor contemplativo da nossa vida, com ritmos e colorações diversas; o zelo apostólico com realizações comuns, mas com campos e abrangências diversas, a preocupação do diálogo, a busca sincera da verdade. Estes elementos são únicos, mas têm concretizações diversas e no respeito pelas legitimas autonomias.

Uma das minhas grandes preocupações com os leigos foi ajudá-los a construir a sua autonomia dentro dos limites da comunhão com a estrutura da Ordem e posso garantir que não é uma tarefa nada fácil, até porque nós frades temos algum desejo de intromissão, nem sempre respeitadora da autonomia laical.

Devo, no entanto, entanto dizer que nisto o espaço dominicano português, como já tive oportunidade de referir é dos lugares onde melhor se vive a comunhão em família dominicana.

São muitos os espaços na Ordem onde se fazem coisas extremamente belas: o diálogo entre espaços educativos na França AEDOM e na Espanha em que as instituições de ensino se organizam em fundação. A articulação entre frades e leigos em meio universitário no México, as missões em terreno difícil na Colômbia, um hospital gerido rotativamente por diversas congregações.

A minha experiência como dominicano é a perceção que o nosso carisma não é pertença de nenhum ramo da Família Dominicana, cada um de nós vive uma dimensão do carisma, mas ele é um dom a Igreja para ser vivido de formas muito diferentes.

Fr. Rui Carlos Almeida Lopes, Op

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