3ª Conferência: A mesa do estudo
“Transcorridos na inocência os anos da sua infância, foi enviado a Palência, onde então florescia um estudo geral. Assim começou o jovem Domingos a aplicar-se com diligência ao estudo deixando de lado as frivolidades em que se costuma viver durante a adolescência.”
É assim que Rodrigo Cerrato nos descreve a formação de S. Domingos desde tenra infância. A tradição traz até nós, também, a memória de um tio seu materno sacerdote em Gumiel de Hizán, povoação não muito distante de Caleruega, junto do qual teria crescido e onde teria aprendido as primeiras letras.
Ainda na região há alguns dados que indicam uma aproximação ao Mosteiro de La Vid, hoje ocupada pelos Agostinhos, mas naquela altura ocupada pelos Premonstratenses. As primitivas Constituições que seguramente têm mão de S. Domingos indiciam proximidade a esta Ordem Canonical. Quando visitamos La Vid nos dias de hoje sempre ouvimos dizer aos religiosos Agostinhos que com toda a certeza S. Domingos aí terá feito uma parte da sua formação cultural e eclesiástica.
Cruzando todos estes dados podemos concluir que S. Domingos terá tido uma sólida formação, nem sempre comum no seu tempo. A comunidade de Osma da qual irá participar, nascida da reforma gregoriana, começada um século antes do nascimento do nosso Pai, era uma comunidade de gente culta como o atestam os documentos que hoje aí se podem achar.
Uma mesa que S. Domingos frequentou foi a difícil e penosa mesa do trabalho intelectual. Rodrigo Cerrato dá-nos a indicação de que S. Domingos para conseguir uma maior agilização da sua mente deixou, por mais de dez anos de beber vinho, após os quais por enfermidade do estomago contraída o voltará a tomar, mas amplamente misturada em água.
Havia um dominicano brasileiro que passou por Portugal nos início da década de 50 do século passado, que deixou um pequeno folheto aos estudantes sobre o estudo e referia-se a ele como “haec est poenitentia nostra”.
O estudo não é uma tarefa fácil, é mesmo um exercício extremamente exigente. Na sua obra “A vida intelectual” o P. Sertillanges define-o como um exercício que formata toda a vida cristã, não pode coexistir com a mentira, com a vaidade, com as paixões. A par do treino desportivo, podemos também dizer que o estudo exige um treino do espírito, eu diria exige uma certa da busca da santidade. O percurso e o caminho da santidade na vocação dominicana exige o estudo.
Ás vezes digo, meio a brincar meio a sério, quando as conversas apenas apontam para a superficialidade das respostas: “olhe que a nossa teologia não pode ser a da mulher do merceeiro da esquina à espera da opinião da última freguesa”.
Começo que recordar que o estudo se opõe à curiosidade. A curiosidade salta como a borboleta de flor em flor, sem nunca se posar por muito tempo. A grande oferta que os meios de comunicação atual nos oferece nem sempre nos ajuda a aprofundar as coisas, mas abafam-nos com novidade chamativas. Infelizmente mesmo em Igreja faz-se a proposta de um sem número de coisas que nunca ficam suficientemente amadurecidas porque são demasiadas. Sabemos que comer demais causa indigestão, tal pode acontecer com o excesso de oferta. A estudiosidade exige tempo, espaço, deve ser doseada para se tornar meio de formação e não apenas de informação. No nosso tempo há excesso de informação e falta de formação.
O recente Capítulo da Ordem realizado em Bin Hoa no Vietnam exorta as comunidades dos irmãos a que se criem nas comunidades condições para se poder realizar esta atividade que, para nós, é de importância crucial. Entre estas condições avulta o silêncio onde a Palavra adquire forma no nosso coração.
Eu sei que estamos entre irmãos e irmãs adentrados na vida, com uma multiplicidade de atividades e empenhamentos que nos agarram, mas nem por isso podemos por de parte o estudo. Vejo, com muita alegria, o empenhamento da Madre Geral na formação contínua das Irmãs, um estudo ajustado à vida, interpelativo, com sugestões que ajudam a compreender a importância do estudo para a vida. Não é um estudo para diplomas, é um estudo para crescermos interiormente percebermos melhor porque estamos aqui e o sentido da nossa vida.
Ao longo dos anos que estive em Roma pude constatar a importância do estudo em comunidade. Era uma comunidade onde quase todos os dias havia gente que partia e gente que chegava, eramos trinta de mais de 15 nacionalidades distintas, mas o estudo partilhado era uma meta onde todos nos empenhávamos, porque também o estudo é uma tarefa comunitária onde todos, mesmos todos independentemente dos seus títulos académicos, podíamos participar.
O último Sócio do Mestre da Ordem, Vivian Boland dizia muitas vezes que na Ordem o mais importante a fase mais importante da formação não é formação inicial (noviciado, juniorado, etc.) mas a formação continua. Dizia também que a formação tem sempre várias fases: humana, espiritual, doutrinal e apostólica que se devem atualizar de forma continuada. Hoje isto é doutrina comum da Congregação para a Educação Cristã.
O estudo e o interesse por ele é fundamental para manter viva a nossa vocação, para que esta mantenha o seu sentido e para não nos tornarmos autómatos no naquilo que fazemos.
Mas o objetivo do estudo na Ordem tem um sentido apostólico. Tudo na nossa vida o tem: fomos fundados para a salvação das almas e é por elas que devemos despender a nossa vida. O estudo é um ato supremo de caridade. Escrevia dizem que alguns estudam para edificar os outros e isso é caridade. Esquecemos que a caridade tem muitas facetas e uma delas é ajudar as pessoas no seu caminho para o encontro com a verdade, nunca impondo nada, mas iluminando dúvidas, ajudando a encontrar o justo sendeiro no meio dos cruzamentos que a vida propõe. Tal como a pregação o estudo e devemos sublinhar uma altíssima forma de amar o próximo.
Este estudo não se confina a diplomas sobre os quais tantos repousam, mas um esforço continuo, quotidiano para descobrirmos e darmos a conhecer o rosto de Deus. Práticas cujos frutos alimentaram tantas gerações, como a da leitura espiritual são práticas de autêntico estudo que nos alimentam e nos dão horizontes no nosso caminho.
Há uma verdadeira ascese que esta atitude sapiencial exige de cada um de nós. Dos textos mais belos do AT são os textos sapienciais. Sempre me encantaram, neles podemos perceber como a sabedoria e a vida andam de mãos dadas. Estes textos são dão-nos a perceber como ciência humana e sabedoria divina se dão as mãos.
Ainda com relação ao estudo peço para fazer ainda dois pequenos excursos o primeiro é sobre a verdade. A partir do século XIV encontramos representações de Domingos abençoando a Inquisição, realidade absolutamente falsa e desfocada no tempo. Mas não falta um certo ar inquisitorial na forma de afirmação da Veritas própria da nossa vocação e espiritualidade. Conheci muita gente na Ordem que afirma o seu serviço à verdade com um forma de intransigência muito afastada da forma como a Igreja de hoje afirma a verdade do Evangelho e certamente também muito distante da forma como a viveu S. Domingos. A pregação de Domingos afastou-se voluntariamente da Cruzada, propõe a verdade sem segurança do poder, propõe-na no diálogo humilde de um caminhante que se cruza com os outros nas praças das cidades, sem autoridade nem poder especiais. A verdade não é mais verdade porque proclamada a partir de um pedestal. Antes a verdade proclamada a partir da humildade, respeitando o percurso do outro e mesmo o seu erro faz com que a Verdade se torne melhor aceite. O Papa Bento XVI escrevia: “A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira”. Era assim que começava o belíssimo texto que ficou conhecido pela expressão “Veritas in caritate”, retirada da Ef 4,15. O estudo que leva a uma certa forma de poder e a uma proclamação da verdade orgulhosa e “inchada” (lembrando a expressão de Paulo na 1ª Cor 8,1)..
Uma outra dimensão é a ligação entre o estudo e a misericórdia. Como já dissemos anteriormente foi em Palência que S. Domingos vendeu os seus livros, anotados pelo próprio punho, para matar a fome a alguém. É bom sublinhar a ligação entre a misericórdia e o estudo. Os estudos de Domingos não o afastaram das necessidades mais prementes dos seus contemporâneos, pelo contrário, despertam-no para as necessidades do próximo. Já antes tinha falado da ligação entre o estudo e a caridade, agora queria referir-me para a ligação entre o estudo e a misericórdia. Quando lembramos a comunidade da Hispaniola ardente na defesa dos direitos dos povos originários, deparamo-nos com uma defesa com base em boa teologia, como percebemos haver no segundo sermão de Montesinos. O estudo é base para uma ação marcada pela misericórdia já que esta implica uma atuação em que razão e coração se têm que conjugar para uma melhor resposta aos problemas dos outros.
A mesa do trabalho em Palência é uma escola para o anúncio da Palavra que Domingos levará a cabo e para o qual fundou a Ordem dos Pregadores.
Fr. Rui Carlos Almeida Lopes, OP