7ª Conferência: À mesa da Eucaristia
“Disse também que quando o ajudava na celebração da Missa se fixava no seu rosto e via correr as lágrimas pela cara com tanta abundância que uma não dava espera à outra”.
É este o testemunho de Fr. Bonviso de Piacenza, companheiro de S. Domingos em diversas viagens. Este testemunho faz parte das atas dos testemunhos recolhidos em Bolonha para a canonização de S. Domingos. Outros testemunhos confirmam que S. Domingos celebrava todos dias, o que não era comum naqueles tempos, e sempre com grande efusão de lágrimas.
Já vi muita gente celebrar com mais atenção ou menos atenção, com maior gosto estético ou menos atenção à beleza dos gestos, com cuidado pelo cumprimento das rúbricas ou esquecendo-as, com grande escrúpulo ou com expressões de comoção, mas apenas uma vez vi alguém celebrar com esta intensidade que vemos refletida na forma de celebrar de S. Domingos. A pessoa que vi assim celebrar foi o Dom Hélder Câmara uma vez que tive oportunidade de estar mais perto dele. Recordo como me marcou essa celebração e não podemos dizer que este homem tinha uma piedade intimista.
A expressão do nosso Pai ao celebrar a Eucaristia faz-me compreender como a mesma era fundamental no exercício da missão de anúncio à qual S. Domingos se sentiu chamado.
Na minha Lectio Divina tomo muitas vezes reflexões de pastores de igrejas reformadas. As igrejas reformadas, ditas protestantes têm muitas vezes uma aproximação à Escritura muito profunda cheia de conhecimento, mas também de beleza, mas falta-lhes algo: a força do sacramento.
O nosso Bispo D. António Marto definiu a momento como momento de emergência eucarística. O ano passado e o corrente levou muita gente, em momento de alívio a não voltar à celebração eucarística. Justificadamente temos um certo receio que uma situação de exceção se torne situação de continuidade. O problema não está tanto em cumprimento do preceito, mas no perceber a essencialidade da Eucaristia no contexto da vida cristã.
A visão que as gerações anteriores passaram da Eucaristia foi a de uma terrível obrigação que ensombrava as manhãs de Domingo. Timothy Radcliffe no seu livro sobre a Eucaristia, curiosamente escrito a pedido do Arcebispo Primaz da igreja anglicana, para ser proposta de leitura para os seus pastores durante uma Quaresma, começa por contar a história, reinventada pelo autor a partir de uma outra passada num contexto diferente, de um homem dorminhoco que tardava em levantar-se apesar da própria mãe o instar para tal. Depois de tentativas infrutíferas, a mãe deu-lhe três argumentos fundamentais: a Missa é importante, esse dia era Domingo e ele era o Bispo da diocese e deveria presidir à mesma.
Diante de Deus e de nós mesmos interroguemo-nos sobre o lugar da Eucaristia na nossa vida e missão.
Neste momento eu próprio na estrutura da CIRP diocesana estou a preparar um projeto de trabalho para que os institutos de vida consagrada possam refletir e partilhar com a igreja diocesana o sentido da Eucaristia na vocação, vida e missão na sua família espiritual. Este desafio deixo-o a cada um neste dia de retiro.
Deixo da minha parte alguns elementos que parecem importantes para esta reflexão. Com o Concílio afirmamos que a Eucaristia é o ponto de partida e de chegada de toda a nossa atividade apostólica. Na sua carta pastoral D. António Marto escreve que a Eucaristia é como uma abóbada da reflexão pastoral.
O primeiro elemento é perceber o mistério da presença única de Jesus no mistério eucarística, presença real, mas presença próxima tão frágil como a da matéria do Pão. Uma experiência incarnatória que nos espanta e encanta pela sua proximidade, simplicidade e ao mesmo tempo grandeza. O tudo da ação de Cristo está no sacramento da Eucaristia: a sua paixão, o dom de si mesmo até ao fim e ao mesmo tempo a presença de ressuscitado como casa dos discípulos de Emaús. De fato a grandeza e a simplicidade caminham juntas, de forma tão próxima e complementar, o sublime e o quotidiano unem-se intimamente, o espaço e a eternidade cunham a mesma moeda.
Compreendo Tomás que diante do mistério contemplado na Eucaristia já nada tem valor:
Eu vos adoro devotamente, ó Divindade escondida,
Que verdadeiramente oculta-se sob estas aparências:
A Vós, meu coração submete-se todo por inteiro,
Porque, vos contemplando, tudo desfalece.
A vista, o tato, o gosto falham com relação a Vós,
Mas, somente em vos ouvir em tudo creio.
Creio em tudo aquilo que disse o Filho de Deus:
Nada mais verdadeiro que esta Palavra de Verdade.
Na cruz, estava oculta somente a vossa Divindade,
Mas aqui, oculta-se também a vossa Humanidade;
Eu, contudo, crendo e professando ambas,
Peço aquilo que pediu o ladrão arrependido.
Não vejo, como Tomé, as vossas chagas;
Entretanto, vos confesso meu Senhor e meu Deus.
Faça que eu sempre creia mais em Vós,
Em vós esperar e vos amar.
Ó memorial da morte do Senhor!
Pão vivo que dá vida aos homens!
Faça que minha alma viva de Vós
E que à ela seja sempre doce este saber.
Senhor Jesus, bondoso pelicano,
Lava-me, eu que sou imundo, em teu sangue.
Pois que uma única gota faz salvar
Todo o mundo e apagar todo pecado.
Ó Jesus, que velado agora vejo,
Peço que se realize aquilo que tanto desejo;
Que eu veja claramente vossa face revelada
Que eu seja feliz contemplando a vossa glória.
Entre as expressões que o texto utiliza, há uma que me chama a atenção de modo muito particular: bondoso pelicano. Sabemos que o pensamento antigo pensava que o pelicano alimentava as suas crias com o seu próprio sangue. Hoje percebe-se que não é assim. Mas sim somos alimentados pelo próprio corpo do Senhor entregue por nós e com o seu sangue derramado por nós. A Ordem, particularmente com S. Tomás deu uma grande ajuda a perceber a realidade do que acontece no altar. É tão profunda tão sublime esta realidade que nos deixa maravilhados. Ontem como hoje vale a pena na Eucaristia e na adoração silenciosa fitar a hóstia consagrada e perceber tudo o que de dom de amor nela se contém.
Temos que às vezes se celebre e se viva a Eucaristia tirando-lhe a sua transcendência. É um empobrecimento terrível.
Nas Igrejas orientais o canto do “trisaguión” que, como sabemos tem a sua raiz na texto de Isaías em que descreve a sua vocação, é entendido como um canto em que a majestade de Deus abraça todo a celebração do mistério eucarístico.
Porém a eucaristia para além de ser contemplada, configura-nos com Cristo e, a partir do Pão que recebemos tornamo-nos, nós próprios pão para os demais. S. Inácio de Antioquia num texto que, certamente conhecemos bem, percebe o seu martírio em chave eucarística: o seu martírio, moído pelas dentes das feras, será ser ele próprio, pão eucarístico.
Já tinha preparado esta conferencia chegou-me um vídeo que continha uma canção que se desenvolvia ao longo do tema: “diz-me como ser pão?”
A nossa vocação é fazer da Palavra pão para muitos, mas tal nunca poderá conseguir-se desvinculados da Eucaristia. Ser pão no conteúdo do que transmitimos e na forma como o transmitimos tem que ter a marca eucarística.
Na Eucaristia reconhecemos a grandeza do dom e a urgência de o oferecermos na gratuidade, pois na gratuidade o recebemos.
Por tudo isto, e se atentarmos na profundidade de tudo isto percebemos quanto a Eucaristia é central para nós, provocando com justeza lágrimas de gratidão por tão grande dom, as lágrimas que Domingos derramava abundantemente quando celebrava a Eucaristia.
Fr. Rui Carlos Almeida Lopes, OP