5º Conferência: À mesa com o estalajadeiro de Toulouse
“Chegado a Toulouse percebeu que os seus naturais estavam num caminho de perdição, desde há algum tempo, pelo contágio de tão depravada heresia. Então começou a comover-se profundamente, movido pela compaixão por tão miserável estado. Naquela mesma noite tendo sido recebidos na hospedaria da mencionada cidade, o bem-aventurado Domingos, com ajuda do Espírito de Deus converteu à fé católica um hospedeiro herege convencendo-o quer pelo modo afável de persuadir, quer pela irrefutável conexão de argumentos. Pois não era possível resistir à sabedoria e ao Espírito que falava pelo bem-aventurado Domingos”.
É assim que Pedro Ferrando descreve a conversão do hospedeiro de Toulouse. Foi este o primeiro impacto que S. Domingos teve com a heresia. Vai na viagem às Marcas com o seu bispo Diego e passa pelas terras do atual Sul de França (naquele tempo não existe o conceito atual de França) terrivelmente atingidos pela heresia cátara. Será esta a região que S. Domingos escolhe como campo de pregação e será nesta cidade que se estabelece uma comunidade de pregadores embrião da Ordem. Será ainda desta cidade que, em 15 de Agosto de 1217, sairão os frades a pregar e a fundar comunidades em diversos espaços da Europa.
O encontro com o estalajadeiro foi um encontro marcante e configura um novo estilo de pregação. Não parece falta de respeito imaginar como num filme aquela noite: apesar de cansado da viagem não recolhe ao lugar que lhe estava indicado para repousar, mas esteve atento ao olhar de rejeição com que foram acolhidos estes clérigos de hábito branco e capa negra à maneira dos cónegos. Deverá ter arranjado algum pretexto para uma conversa, quem sabe senão lhe terá pedido algo de comer ou de beber e ficou ali sentado dando espaço para que aquele homem, a pouco e pouco começasse a desenrolar as críticas à Igreja e à vida pouco edificante de algum clérigo.
O P. Timothy Radclyffe escreveu que a nossa Ordem nasceu num pub, escreveu e alguma vez lho ouvi também. Penso que é um pouco exagerada a afirmação, mas a conversa sobre coisas que levaram a uma conversão não se deu numa igreja ao som de cânticos melodiosos de órgão, deu-se num espaço bem pouco canónico. Isto faz-me lembrar o exemplo de um religioso, já entrado em idade, identificado pelo seu hábito visitava centros comerciais e abria-se à interpelação dos transeuntes, quantas conversas interessantes este irmão não terá tido. Eu próprio vivi a experiência que os irmãos na Bélgica oferecem: um bar em plena cidade universitária, com música ambiente e cerveja da sua produção onde passam tantos estudantes e onde, em cada noite se encontra sempre um dominicano que acolhe e acompanha, sem vergonha de servir uma cerveja ou um snack. São experiências muito interessantes e muito ricas.
De fato, o primeiro encontro de Domingos com um herege que reconduz à Igreja não parece ter sido em lugar muito canónico, talvez naquela noite não deixou mesmo de partilhar uma caneca de vinho com aquele homem, possivelmente inquieto no seu coração.
Uma primeira constatação: todo o local é local de anúncio. Sempre me apaixonaram figuras do catolicismo francês um deles é o Bispo Alfredo Ancel (1898-1984) foi um Bispo operário, com licença da Santa Sé, ordenado Bispo em 1946 era membro da sociedade dos Padres do Prado. Vivia com outros padres do seu instituto num bairro pobre de Lyon. Ao almoço frequentava um restaurante popular do bairro, era próximo, fez-se próximo.
É importante perceber com S. Domingos a importância desta proximidade, em terreno neutro onde não somos protegidos pela esfera religiosa. Muitas irmãs têm tido e têm esta experiência de proximidade em tantas casa de inserção onde a proximidade faz estender o Evangelho de forma tão bela quanto dinâmica. Todo o espaço é espaço de anúncio. Todo o anúncio do Evangelho é anúncio de proximidade. Haverá outros lugares onde Domingos e seus filhos se fizeram próximos das pessoas: a universidades, as suas casas implantadas no coração das cidades de portas abertas para acolher os que nelas queriam celebrar a sua fé ou sentir anúncio talvez inovador.
Mas continuemos a imaginar o que se passou naquela noite. Porventura o primeiro a falar foi o estalajadeiro, era ele que tinha dúvidas que estava revoltado com caricaturas de igreja que teria visto, escandalizado com a riqueza e imponência de igrejas e eclesiásticos. Domingos ouviu e certamente ouviu muito.
O ex mestre da Ordem fr. Bruno Cadoré dizia que a pregação tem de ser uma experiência de “conversação”, de diálogo, portanto, onde há palavra e silêncio, acolhimento e proposta, onde nunca sabemos tudo nem nunca há soluções já feitas para tudo porque cada um é único.
Domingos de Gusmão ouviu, às vezes em silêncio outras vezes deixando escapar lágrimas, mas sempre com um olhar complacente e certamente nunca reprovador. Às vezes dou-me conta que é difícil ouvir, queremos acabar depressa a conversa, destruindo rapidamente os argumentos do outro, certamente muitas vezes frágeis, com um preparado que trazemos numa imaginária maleta onde temos as receitas infalíveis. Não foi este o modo de agir de S. Domingos há um dar espaço, há um parar tudo para que fique apenas a pessoa que está diante de nós como aquela mulher trazida diante de Jesus para ser condenada. Todos se foram embora ficou apenas Jesus e ela, como escreveu Santo Agostinho e recordava o Papa Francisco na conclusão do Ano da misericórdia (curiosamente também o ano jubilar da Ordem), ficou a “mísera e a misericórdia”.
Ficaram apenas duas pessoas e o tempo parou à volta. Se soubéssemos escutar como Jesus como Domingos talvez que o nosso anúncio e testemunho fosse muito mais eloquente. Às vezes nas nossas conversas fica não só tanto por dizer, mas tanto por ouvir.
Com fina agudez o autor do texto dá-nos dois elementos importantes, dois adjetivos de particular importância no diálogo estabelecido: afável e irrefutável. Parecem contradizer-se estes dois elementos uma acolhe e o outro admoesta.
A afabilidade é sinónimo de compreensão de doçura a irrefutabilidade traduz uma serena convicção daquilo que estamos a dizer. São dois elementos de diálogo que se completam entre si e não se excluem mutuamente. Estamos certos que Domingos naquela noite terá explicado a fé manifestando uma íntima certeza daquilo que estava a anunciar, sem deixar de ser afável no trato e no diálogo.
Sempre me recordo de um dominicano espanhol o P. Bandera que aos noviços respondia com uma afável bonomia, sublinhando os pontos positivos das nossas frágeis argumentações e manifestando o que ainda faltava num caminho de encontro com a verdade. Há conversas com gente que pensa diferente que não têm porque não conduzir senão há harmonia e entendimento. Há conversas que são pontes e outras que cortes, mesmo quando o que corta possa estar mais perto da plena razão ou da verdade.
Como são os nossos diálogos? E entre aqueles em que falamos de Deus, mostram a serenidade do amor paterno de Deus ou a rigidez de um pensamento bem mais ideológico que de uma revelação de amor.
Vejo este problema no diálogo acerca de questões fraturantes, recentemente tivemos a questão da eutanásia que a todos nos choca. Como falamos disto, com que delicadeza cristã tratamos destas coisas que às vezes para nós não são senão seres de razão distanciados. Sendo convictos não deixemos de ser afáveis e sobretudo respeitar o que pensa diferente: vencer não é convencer, argumentar não é excluir as sementes de verdade e de bem que existem no coração de cada pessoa.
O encontro de S. Domingos com o estalajadeiro de Toulouse foi um ponto marcante na sua vida e deve-o ser marcante para os seus filhos anunciadores na Verdade na força da compaixão.
Fr. Rui Carlos Almeida Lopes, OP