Carta escrita por Fr. Bruno Cadoré, Mestre Geral da Ordem
Mendicantes e solidários: para uma cultura da solidariedade ao serviço da pregação
Num mundo carregado de riqueza e existindo uma circulação de dinheiro sem precedentes, mas onde o abismo entre ricos e pobres aumenta cada vez mais, a Ordem não pode permanecer indiferente, nem permitir que as «lógicas do mundo» determinem as relações entre nós. Por isso, devemos desenvolver entre nós uma «cultura da solidariedade», autêntica e exigente, tornando a nossa pregação enraizada na procura de um mundo mais igualitário. Esta cultura também pode ajudar a fortalecer a nossa unidade, que é uma característica fundamental da nossa Ordem.
Introdução: uma cultura da solidariedade a partir da mendicância
Mendicância
A Ordem dos Pregadores foi fundada como uma ordem mendicante e, mesmo que os tempos tenham mudado, é importante recordar sempre este elemento quando falamos da nossa identidade dominicana. Sabemos que Domingos era exigente de forma radical diante da pobreza: na sua época, decidiu optar por um estatuto que o tornasse solidário com aqueles que se encontravam numa situação de abandono; também insistia em não ter propriedades, quer a nível pessoal quer comunitário. Isto levou-o, naturalmente, a adoptar o estatuto de mendicante, seguindo o exemplo do próprio Jesus (cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiae III, 40 3). A mendicância, além de ser consequência de uma opção radical pela pobreza, manifesta também a opção de viver em dependência daqueles a quem são enviados os pregadores, à imagem de dependência de Jesus e os primeiros apóstolos (Lc 8, 1-3). Quando vão às aldeias e cidades para proclamar o Reino de Deus. Esta dependência manifesta a vontade de assumir o risco que implica uma certa precariedade material, (à imagem de S. Domingos) e a opção por uma pregação itinerante. Por isso, quando falamos de solidariedade face à missão universal da evangelização, recordamos que é necessário apoiar-se mutuamente, dentro da itinerância evangélica que qualifica a nossa vida (itinerância por causa do Evangelho) e que determina o nosso objetivo: (itinerância para levar o Evangelho).
Por diferentes razões, não é nada fácil optar hoje por uma precariedade mendicante. Temos o dever de responder a um certo número de obrigações, como por exemplo, a formação dos frades mais jovens ou uma atenção à qualidade da formação para os maiores, as contribuições necessárias para a segurança sanitária ou para a pensão da terceira idade, além da manutenção dos nossas casas e das celebrações. Se tivermos em conta a realidade da precariedade social que muitas pessoas sofrem em tantos países, não seria nem saudável, nem justo pretender que nos identifiquemos com eles. Aliás, dado que existem sistemas de solidariedade estabelecidos entre os membros de cada sociedade, os religiosos não podem entrar voluntariamente numa situação onde os outros teriam a obrigação de subsidiar as necessidades que eles mesmos poderiam cobrir. Isto não quer dizer que a opção por certa «sobriedade» e simplicidade de vida não deva constituir uma opção concreta para não nos distanciarmos dos mais necessitados, nem descobrir que estamos «solidários» com os ricos e poderosos sem sequer tê-lo decidido realmente. Portanto, é necessário reconhecer que progressivamente fomos habituando-nos a certos níveis de vida que nos exigem assegurar a quantidade de recursos correspondente e que nem sempre estamos dispostos a baixar o nível de vida e de conforto que temos em muitos países. Do mesmo modo, em muitos lugares habituamo-nos a ser proprietários de grandes bens mobiliários ou então procuramos sê-lo. Mas depois dificilmente seremos capazes de renunciar a esses bens para cobrir outras necessidades mais essenciais, mesmo quando, às vezes, necessitemos de pedir à generosidade de outros para poder mantê-los.
Por isso, não podemos ficar em puras palavras, pois temos é que nos deixar interpelar por uma reflexão sobre a mendicância que nos leve a avaliar objectiva e humildemente o que supõe tal opção e a refletir sobre quais são as necessidades reais das necessidades que pedimos ajuda a outros. Deve-nos preocupar, especialmente, uma pergunta: em que medida a nossa relação com a mendicância nos coloca numa situação de dependência perante os outros, para cobrir as necessidades da nossa vida quotidiana e em que medida vemos a mendicância como a maneira moderna para pedir aos outros que financiem necessidades que nós mesmo estabelecemos? Ou queremos, pelo contrário e de maneira mais justa, pedir o apoio dos outros, aprendendo a determinar a partir das «relações vivas» (LCO, 99 II) o nível de vida que seria adequado para a nossa missão de pregadores?
Solidariedade e bem comum
Os últimos dois capítulos gerais (ACG Roma 2010 §§ 57, 72-73; ACG Trogir 2013 §§ 48, 57, 111, 209) convidam-nos a questionarmos a nossa maneira de viver a pobreza e a mendicância, desde a visão global de uma autêntica cultura da solidariedade. Esta perspectiva poderia ajudar-nos a evitar o risco (assinalado com frequência durante as visitas às províncias) de tomar decisões apostólicas que, na realidade, acabam seguindo critérios mais relacionados com a segurança económica do que com a missão, algo que muitos frades lamentam. Nas visitas às províncias, pode-se escutar, por exemplo, os frades que lamentam a necessidade de conservar algum trabalho bem remunerado que, no entanto, os impede de responder a uma necessidade mais urgente, ou outros que se lamentam porque a decisão de permanecer num lugar determinado está ligado à sua rentabilidade mais do que a uma necessidade real do lugar. Certamente, as questões económicas devem ser avaliadas dentro da organização da nossa vida apostólica mas o que é que se deve fazer para que elas não se tornem num critério redutivo que trave a nossa resposta às necessidades da evangelização ou que a nossa resposta não seja criativa?
Desde a fundação da Ordem existiram numerosas formas de solidariedade entre as diversas entidades. Estas formas permitiram a dilatação da nossa missão e fortaleceram os nossos laços fraternos de solidariedade ao longo dos séculos. No entanto, uma cultura da solidariedade forte entre nós significaria, entre outros elementos, escutar o chamado de não nos centrar prioritariamente em nós mesmos, mas em deixarmo-nos «expropriar a si mesmo», seguindo a bela expressão utilizada no ano 2000 pelo Cardeal Ratzinger para indicar as exigências espirituais da nova evangelização. A expropriação de nós mesmos através da atenção às necessidades dos outros poderia constituir o meio pelo qual emerge a consciência de uma responsabilidade apostólica comum por onde se organiza a nossa vida material concreta. Deste modo, a solidariedade não significaria simplesmente constituir um fundo de recursos, graças ao qual cada um pode realizar os seus próprios projectos com a ajuda económica dos outros, mas numa maneira de viver entre nós, baseada numa vontade comum pela pregação, que nos faça capazes de ajustar a nossa vida concreta às necessidades apostólicas reais assumidas de maneira solidária por todos.
Tomemos como exemplo a formação inicial dos frades, que poderia ser um dos elementos prioritários da responsabilidade comum, uma vez que a pregação dos frades pregadores do futuro deve ser uma verdadeira preocupação de todos. Nesta área, podemos constatar uma grande desigualdade entre os frades da Ordem, seja relacionado aos recursos para garantir a vida quotidiana das casas de formação, aos meios para a vida académica (bibliotecas, instrumentos de trabalho, matrículas universitárias) ou à possibilidade de experimentar a universalidade da Ordem. Se cada frade em formação faz a sua profissão para a Ordem deveríamos procurar a melhor maneira de assumir esta realidade desde um ponto de vista económico, de maneira que cada um possa beneficiar dos meios necessários para a sua formação e para os seus estudos iniciais. Também poderíamos abordar a necessidade da solidariedade frente aos estudos académicos complementários e especializados que cada província tem a obrigação de oferecer aos frades para assumir a dimensão da missão da Ordem… Existem iniciativas de solidariedade entre algumas províncias no campo da formação e a generosidade de algumas entidades é de admirar. Sem dúvida alguma, poderíamos melhorar ainda mais a eficácia deste apoio se estruturássemos melhor a solidariedade a nível de toda a Ordem: mediante ajustes e colaborações prolongadas entre as numerosas estruturas de formação existentes nas províncias que têm suficientes recursos com a finalidade de liberar forças disponíveis, no sustento de casas de formação ainda frágeis, bolsas de estudos, colaborações estruturadas para o ensino ou a disponibilidade para reforçar as comunidades de formação, etc.
Quando se fala de solidariedade, a referência da Sagrada Escritura que nos vem espontaneamente à mente é a da primeira comunidade descrita nos Actos dos Apóstolos, onde «Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum; vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um» (Act 2, 44-45). Sabemos bem que não se trata só de partilhar com os outros os nossos excedentes de acordo com a «boa vontade» generosa. Trata-se de ter à priori uma estima pelas necessidades do outro e de considerar que ditas necessidades são, em certa medida, nossas. Quando aparece a tentação de resolver a questão da posse em comum de um ponto de vista exclusivamente económico deve-se dirigir o olhar a um horizonte mais amplo no qual apareça a necessidade da solidariedade para responder às necessidades próprias da tarefa apostólica ou do reforço das comunidades, isto em virtude da nossa responsabilidade apostólica comum. O pecado de ocultação (referido nos Actos) não é em primeiro lugar uma mentira mas um abandono da preocupação pela unidade de todos que supõe, de maneira incondicional, confiança e estima mútuas. A mendicância é como uma escola que nos ensina a assumir o papel de sermos mendicantes da estima dos outros nas nossas necessidades. Por outro lado, o pôr em comum os bens é uma pedagogia da vigilância do bem comum que é fruto da preocupação pelas necessidades do próximo.
Renovação na Ordem
Os últimos capítulos gerais fazem um apelo para promover a cultura da solidariedade e pedem também uma reestruturação da Ordem. Esta reestruturação inscreve-se na perspectiva da renovação que nos convida à celebração do Jubileu da Ordem. A mesma deveria ser definida não como uma racionalização das nossas estruturas mas como o desejo de arranjar de uma maneira melhor as nossas formas de organização, em função da missão da pregação. A questão central é a promoção e o apoio da pregação da Ordem para a Igreja, em lugares novos ou em lugares particularmente difíceis. A partir desta perspectiva, é importante ter em conta as entidades fortes, bem estabelecidas e asseguradas. De facto, o perigo das reestruturações no nosso mundo «globalizado» é o de dar preferência aos mais fortes, convidando os frágeis a unirem-se a eles ou a estarem sob a sua protecção, expondo assim ao libre arbítrio a boa vontade dos fortes. Pelo contrário, no nosso esforço de reestruturação devemos ter em conta a complementaridade entre todas as formas da presença da pregação que a Ordem tem, sejam mais fortes ou mais frágeis. Por exemplo, os inícios de uma nova missão podem ser frágeis e precários e necessitar de um apoio prolongado e coerente, mesmo quando se queira fazer rapidamente juízos sobre a sua eficácia. Sabe-se que em certos lugares de pregação, que requerem uma importância particular são (e continuarão a ser) vulneráveis e que dificilmente poderão garantir o sustento dos pregadores. Este tipo de situações justifica que se organizem formas duradouras de solidariedade. A única perspectiva possível é, repito mais uma vez, a responsabilidade comum frente à pregação que nos oferece a todos a possibilidade de levarmos juntos a Palavra a lugares muito difíceis onde a fragilidade e a precariedade serão a mesma condição do testemunho evangélico.
Claro está, que a cultura da solidariedade deve estar dentro do contexto global do nosso mundo. Uma das características do «mundo global» é a crescente distância entre ricos e pobres. De certo modo, esta distância também aumenta entre nós, entre as províncias e inclusive, algumas vezes, entre as comunidades no interior da mesma província. A distância que nos separa dos grupos mais pobres da população aonde somos enviados também aumenta (em meios de transportes e de comunicação, acesso ao serviço de saúde, educação…). Quando pensamos numa cultura de solidariedade vemos a obrigação de dar o sentido que pretendemos ao facto de sermos enviados a viver como irmãos no mundo e a testemunhar, através dessa fraternidade, a Palavra que nos é dirigida a todos propondo sermos amigos de Deus. Neste sentido, a solidariedade ensina-nos a nascer na fraternidade, tanto no interior das nossas comunidades como na nossa relação com aqueles aos quais fomos enviados.
A solidariedade e os votos
A solidariedade não faz parte dos três votos tradicionais da vida religiosa mas, a partir da perspectiva da mendicância, podemos compreender que uma cultura da solidariedade, tal como a apresentámos, está relacionada com eles. Quando pronunciamos o voto de obediência na Ordem, pedimos a graça de consagrar a nossa vida à Palavra desde a itinerância própria do pregador. De certo modo, fazemos voto de sermos mendicantes porque somos pregadores.
São Domingos pedia aos primeiros frades que lhe prometessem obediência e vida comum. Parece-me que insistir na relação entre a pregação e o esforço de construir fraternidade, São Domingos estava a afirmar implicitamente que o serviço da pregação está unido intimamente ao mistério da graça pelo qual Cristo constitui a sua Igreja numa fraternidade oferecida ao mundo como sinal da esperança da salvação. Comprometer-se na vida comum não é, em primeira instância, uma exigência que venha de uma observância moral, mas um testemunho da esperança nessa obra misteriosa que significa dar vida à fraternidade. Os primeiros seguidores de Jesus na sua pregação viram-no a ser solidário com a humanidade, com aqueles e aquelas que não tinham lugar na sociedade estabelecida pelos seres humanos – como o leproso, o cego de nascença e o paralítico, inclusive os publicanos e pecadores com os que aceita sentar-se na mesma mesa – solidário de todos para a salvação de todos. Deste modo, os discípulos também aprenderam a viver essa solidariedade como um caminho privilegiado para a pregação (cf. Lc 8-10; Mt 10). As cartas apostólicas de Paulo mostram a dificuldade que experimentavam os novos crentes ao longo do tempo, para criar nele verdadeiros laços de solidariedade. As suas cartas insistem no carácter essencial do aspecto económico na vida dos discípulos de Cristo. O testemunho da vida fraterna não é de um ideal moral realizado plenamente mas um testemunho da esperança no qual o ser humano é capaz de se converter à fraternidade, fazendo-se progressivamente solidário dos seus irmãos e irmãs que lhe são dados, inspirados pelo exemplo de Cristo. Nos capítulos 8 e 9, da 2ª Coríntios, São Paulo propõe um paradigma para reflectir teologicamente sobre a solidariedade entre as comunidades cristãs. Neste sentido, a fraternidade solidária é uma modalidade privilegiada do «anúncio do Reino». A promessa de obedecer, de escutar a Palavra para se deixar conduzir e pôr-se no serviço do bem de todos, é o carimbo que marca a entrada na dita solidariedade.
A conversão é, em última análise, uma obra da graça mas aquele que a desejar tem de procurar os meios e as condições concretas para se fazer disponível à obra da graça em si mesmo. Deste este ponto de vista, podemos dizer que a maneira de viver o voto de pobreza constitui um meio dentro desta pregação. Não podemos negar um paradoxo real nas nossas vidas como religiosos: pobres ou mendicantes no início mas foi tão fácil e rápido instalar-se numa vida acomodada e individualista! Isto é certo num ponto de vista colectivo, e entende-se porque é que São Domingos queria prevenir contra o instinto da propriedade que nos pode fixar aos bens em vez de nos tornar disponíveis à pregação. Também se pode ver, desde um ponto de vista pessoal, em muitos de nós que chegámos à Ordem com poucas coisas e que agora, cada vez que recebemos uma designação, devemos organizar mudanças maiores devido à quantidade de livros acumulados e bens de todo o tipo, para não falar das posições sociais ou académicas. O voto de pobreza deve convidar-nos, dia após dia, a deixarmo-nos desinstalar desta tendência e «assegurar» a nossa vida pelos nossos próprios meios, para optar por permitir que «as relações vivas» com as pessoas (e com os frades da nossa comunidade, da nossa província) sejam finalmente a nossa verdadeira segurança. É esta a base a partir da qual receberá «cem por um».
Não devemos pertencer a lugares que permanecem indiferentes diante dos outros mas devemos é aceitar sermos solidários dos países aos quais somos enviados. É possível trabalhar juntos para ganhar mais, com simplicidade de vida e prudência, não pelo prazer de ser considerado um «herói» da pobreza (o que nos levaria a estarmos cheios de nós mesmos) mas para ganhar a liberdade interior e uma confiança mútua que nos permita confiar em que cada um receberá verdadeiramente segundo as suas necessidades. Isto implica insistir na relação essencial que existe entre o voto de pobreza e a decisão de pôr os nossos bens em comum. Deve-se reconhecer que a posse em comum dos bens é uma das dificuldades maiores no interior das comunidades e entre as comunidades no interior de uma província. Todos nós conhecemos variadas estratégias para desviar este compromisso e sabemos que é aí onde se encontra um dos pontos mais difíceis da vida em comum. Confrontar esta dificuldade significa experimentar na nossa própria vida o desafio que é viver na solidariedade com os outros. A vida em comum, a partilha quotidiana da vida fraterna, a organização capitular da comunidade e a gestão concreta do bem comum, tudo isto constitui em certo modo uma «pedagogia» da solidariedade. Por isso, como comunidade é importante dar atenção às solidariedades verdadeiras e fortes que nos unem (dentro das comunidades e/ou províncias) e criar solidariedades autênticas com os pobres do nosso mundo. Isto é um apelo para levarmos a sério o compromisso de optar por organizar a nossa vida pessoal e comunitária sob o sinal da precariedade, não sob a segurança absoluta. Significa, mais uma vez, optar por se deixar desinstalar e «expropriar de si mesmo» …
O voto religioso de castidade faz parte deste movimento porque nos convida a certa desinstalação afectiva. Depois de viver alguns meses numa comunidade com muitas precariedades e próxima de muitas pessoas vítimas da pobreza, um frade dizia que o que mais mexia nos religiosos neste tipo de apostolado religioso não era tanto o voto de pobreza mas o da castidade. É verdade que padecer a pobreza não é algo que alguém deseje e que nunca poderia constituir um «valor» em si mesmo. Mas comprometer-se a viver a solidariedade com os pobres convida a aprofundar e a cultivar ainda mais o compromisso da castidade. Ou seja, convida a procurar uma distância justa que leve a um espaço de liberdade para cada um. A precariedade convida a viver o voto de castidade dentro do celibato consistindo numa insegurança diante da solidão, com esperança de que a partir da carência nasça uma disponibilidade mais forte para viver a nossa capacidade de sermos solidários no modo como Cristo fez na sua própria humanidade. Por isso, a castidade conduz a uma certa atitude na existência e à aprendizagem de uma certa qualidade de relação com queles que passam necessidades, descobrindo que não se trata de cobrir necessidades, mas em «unir trajectos» numa relação de solidariedade que disponibiliza uns com outros.
Solidariedade na missão e testemunho no mundo
Nas visitas às diferentes entidades é sempre importante recordar que a Ordem possui uma unidade orgânica. A Ordem não é um somatório de entidades autónomas que fizeram um contrato entre elas, como se se tratasse de uma «federação», e uma província também não é o somatório de comunidades sobrepostas, nem uma comunidade é a sobreposição de frades individuais. A perspectiva duma realidade «orgânica» e de certo modo integrante (cf. LCO 1, VII), é em si mesma uma forma de anúncio do Reino: se aspirarmos a um mundo no qual o Deus da Aliança poderia aceitar ser o rei e no qual os humanos não procurariam outros «reis» fabricados à sua própria imagem, é conveniente esforçar-se para que o nosso mundo (com as capacidades e limites humanos) seja um mundo no qual todos possam viver. Esse mundo pelo qual aspiramos não pode ficar reduzido a uma organização contratual entre entidades ou indivíduos autónomos: deve ser um mundo no qual os destinos de uns e de outros estejam unidos numa mesma existência assim como estão unidos na mesma esperança em Deus, que é a fonte da comunicação entre os seres humanos e é Aquele que pede uma activa participação. Seria esta a pregação da fraternidade à qual contribui muito especialmente o compromisso com a solidariedade.
Dentro deste horizonte pode-se dizer que, nas nossas comunidades, o tema da relação aos bens materiais, e em particular ao dinheiro, não só manifesta as noções da vida sociais que temos e queremos promover, mas também a esperança real que temos no poder transformador do «exercício da comunhão fraterna». As regras que nos guiam neste campo não existem para «moralizar» a vida religiosa mas para inscreve-la dentro de um horizonte teológico e para dar ao nosso agir uma perspectiva escatológica. Através da perspectiva deste horizonte (e graças à força surgida da esperança que dele pode emergir) poder-se-ão enfrentar os possíveis erros, com a finalidade de corrigi-los: economia paralela, resistência na posse em comum dos bens, consumismo, garantia da vida pessoal, prioridade dada aos laços familiares ou aos apoios privados por cima da solidariedade comunitária, alianças estabelecidas sobre a base de dependências afectivas… Corrigir isto não significa, em primeiro lugar, fazer juízos morais sobre as pessoas, mas numa criatividade dentro da solidariedade da vida fraterna. Do mesmo modo, a perspectiva teológica é a que nos ajuda a definir as prioridades em relação aos mais pobres, aos menos ricos, aos menos produtivos dentro de uma comunidade e a orientar os meios para uma interdependência solidária ao interior da mesma (gestão em comum, dar a cada uno segundo as suas necessidades…).
Este horizonte é o que pode orientar as relações de solidariedade dentro de uma província. Há questões que aparecem com frequência nas províncias: a distinção entre comunidades ricas e comunidades pobres (às vezes, as mais ricas ajudam as mais pobres, mas em certos casos, segundo os critérios que dependem da iniciativa das mais ricas); existe una desigualdade entre aquelas comunidades que sujeitam as contas da sua gestão com a transparência que corresponde e aquelas que, em certo modo, ocultam; em muitos lugares criou-se instituições apostólicas que certamente promovem a pregação, mas não podem ter a tentação de se tornarem autónomas em relação à província, quando estão dependentes que algum frade responsável se torne praticamente no seu proprietário. No geral, várias províncias vêem-se envolvidas numa reflexão sobre os laços que se estabelecem progressivamente entre as opções apostólicas e a preocupação pela rentabilidade económica: é certo que esta dimensão não pode ser ignorada mas trata-se de evitar que, por razões económicas não explicitas, as actividades de pregação orientem a nossa solidariedade até aquilo que possa garantir a nossa própria segurança. Vale a pena assinalar também a questão das relações que se podem dar no interior de uma província com as comunidades, instituições ou os vicariatos que se consideram pouco participativos. Neste sentido, com muita frequência, a realidade económica torna-se no primeiro, e às vezes no único, modo para descrever as relações com os outros.
Como expõe a Ordem, no meio de todas estas realidades, o mundo? É importante tomar consciência disto para vermos a importância radical de trabalhar a favor da nossa comunhão fraterna diante do mundo. A questão da opção pelos pobres é central, pois abrange um critério de análises, autentificação e descentramento (a quem nos aproximamos?). De que maneira as nossas comunidades estão unidas pela solidariedade e como partilham a sua solidariedade com o conjunto de uma província da Ordem?
A Ordem questiona-se sobre as áreas da saúde e da formação inicial onde se evidenciam maiores desigualdades entre nós. Mas também poder-se-ia questionar as ligações com alguns meios para a vida apostólica ou de inserção apostólica – e também, às vezes, na liberdade apostólica. Por exemplo, pode-se aceitar a responsabilidade em paróquias (ou às vezes, pedi-lo) para viver dele, mas em detrimento de dar prioridade ao trabalho educativo, à promoção dos pobres ou à protecção das crianças.
Para o bom funcionamento da solidariedade entre nós é indispensável que se exija claridade, transparência, objectividade e precisão na prestação de contas. Ao mesmo tempo, é importante que não se peça aos mais frágeis, àqueles que carecem das coisas essenciais, um sistema de contas que não se pede aos mais fortes. É certo que o mundo funciona assim, mas nós, que queremos anunciar uma boa notícia com a palavra, teremos de resistir a essa tentação.
Construir uma cultura da solidariedade
Na resposta à solicitude do Capítulo Geral de Roma que pediu ao Mestre para criar uma «centro de apoio à missão» (ACG Roma 2010, 231), criou-se há três anos um centro de solidariedade que actualmente se chama Spem Miram Internationalis. O seu principal objectivo é promover o desenvolvimento da cultura da solidariedade da qual temos vindo a falar e da administração dos fundos de solidariedade nesta perspectiva. Mas esta gestão deve encontrar o seu sentido nas grandes linhas de uma cultura de solidariedade e na sua relevância na medida em que uma «cultura comum de solidariedade» possa contar com o apoio de todos.
Podem-se identificar alguns requisitos necessários para a referida cultura. Ela deve-se apoiar numa consciência apostólica comum e em prioridades assumidas por todos. Por exemplo, não será possível conceber uma solidariedade na área da formação inicial se nem todos estamos convencidos de que é mais importante promover as vocações para toda a Ordem do que nos limitarmos a pensar somente na entidade à qual pertencemos. Isto revela, mais uma vez, que a Ordem não é uma «federação» de províncias (apesar de ser importante que as entidades estejam enraizadas localmente, culturalmente e eclesialmente). Este enraizamento no «particular» é essencial para que cada entidade contribua na promoção da missão da Ordem na sua dimensão ao serviço da Igreja universal. A solidariedade será possível entre nós na medida em que possamos chegar a um conhecimento e uma estima reais até aos projectos desenvolvidos por uns e por outros. E finalmente, se quisermos progredir na solidariedade, cada um deve estar animado por uma determinação autêntica no que é «realmente necessário», pondo o resto à disposição de todos.
Nesta perspectiva, peço a todas as entidades, comunidades e províncias, que reflictam sobre qual a melhor maneira de viver esta solidariedade no interior da Ordem. É possível identificar variadas formas de contribuir neste projecto de solidariedade: contribuições das comunidades ou das províncias nos fundos de solidariedade da Ordem que sustentem os projectos apostólicos e de formação das entidades mais frágeis; colaborações na formação dos frades mais novos; alianças nos temas específicos (por exemplo, na área da educação ou da protecção da infância); partilhar os nossos «recursos humanos» (professores, pastores); responder às solicitudes; partilhar «recursos a nível das relações». As comunidades e províncias podem, cada uma no seu nível, tomar a decisão de apoiar os projectos de solidariedade da Ordem. A divisão Spem Miram Internationalis garante o seguimento dos projectos que propõem ao Mestre da Ordem e supervisiona que o dinheiro seja empregue correctamente para que as comunidades e províncias doadoras tenham segurança no destino dado às suas generosas contribuições. (Cf. o sitio da internet do Spem Miram Internationalis, www.spemmiram.org, apresenta os objectivos e os procedimentos para apresentar candidaturas de projectos, oferece formulários com esta finalidade e mostra os avanços nos projectos financiados através dos diferentes fundos).
É claro que para um bom desenvolvimento da solidariedade são necessárias algumas condições: a exigência clara das contas, os relatórios do que se tem vindo a adquirir, as manifestações de gratidão; mas também há o propósito de não se fechar em atitudes de vitimização ou de dependência infantil. Há pouco tempo, um frade fez-me tomar consciência de que a nossa dinâmica de solidariedade ver-se-ia fortalecida se, talvez, encontrássemos maneira de desenvolver todos juntos um projecto de solidariedade dirigido a pessoas diferentes de nós. Este frade partilhava o seu sonho de que isto fosse uma maneira de festejar o Jubileu da Ordem: dar ao mundo o que temos vindo a receber!
Poderia isto servir de ponto de apoio para concluir esta carta sobre a cultura da solidariedade. Claro que ainda precisamos desenvolver ainda mais a solidariedade entre nós, o que seria um forte elemento para a consolidação da unidade na Ordem. Mas como assinalei anteriormente no início desta carta, a cultura da solidariedade deve ter como referência o facto de São Domingos nos ter transmitido uma Ordem que optou por ser pregadora enquanto medicante à imitação d’Aquele cuja vinda queremos anunciar ao mundo: a Palavra de Vida que se apresenta como mendicante da hospitalidade da humanidade para manifestar que, no Filho, Deus quer solidarizar-se com o mundo.
O vosso irmão, Fr. Bruno Cadoré, O.P. – Mestre Geral da Ordem dos Pregadores
Roma, 24 de maio de 2014
Memória da Transladação do nosso Pai São Domingos
Traduzida de espanhol por Marta Machado.